XXIX
Domingo do Tempo Comum, ano B
Depois de ouvirmos,
nos passados dois domingos, Jesus falar sobre a indissolubilidade do matrimónio
e sobre desprendimento das riquezas como forma de liberdade para aderir ao
Reino de Deus, ouvimos hoje Jesus ensinar que a lógica de Deus não passa
tanto por aquilo que nós habitualmente valorizamos, a saber: a beleza, a
grandeza, a força, a riqueza, o poder, a fama … mas exatamente pelo contrário.
A primeira leitura
leva-nos àquele texto de Isaías sobre o servo fiel e sofredor que, desde
cedo, a tradição cristã interpretou como uma profecia sobre Jesus Cristo. Mas
alarguemos um pouco mais o horizonte e vamos buscar algumas expressões dos
versículos antes do excerto que nos foi dado a escutar: «O servo cresceu
diante do Senhor como um rebento, com raiz em terra árida, sem figura nem
beleza. Vimo-lo sem aspeto atraente, desprezado e abandonado pelos homens, como
alguém cheio de dores e sofrimento, diante do qual se tapa o rosto,
menosprezado e desconsiderado», «foi maltratado», «como um cordeiro que é
levado ao matadouro», «foi suprimido da terra dos vivos» e «foi-lhe dada
sepultura entre os ímpios». Mas, aquele que por nós era visto como fracassado
torna-se sucesso: «fomos curados pelas suas chagas», «terá uma descendência duradoira,
viverá longos dias e a obra do Senhor prosperará em suas mãos», «terminados os
seus sofrimentos, verá a luz e ficará saciado», «ser-lhe-á dada uma multidão
como herança».
A lógica de Deus
passa pelo serviço humilde e generoso: «ele tomou sobre si as nossas
doenças», «o castigo que nos salva caiu sobre ele», «foi maltratado, mas
humilhou-se». Só o serviço humilde pode ser veículo para a realização dos
desígnios de Deus. O poder leva à tirania, o serviço leva ao amor.
Na passagem do evangelho
que hoje escutamos vemos refletida a lógica do mundo, essa lógica que tantas
vezes orienta (ou desorienta) os nossos desejos, vontades e opções e que por
vezes, desgraçadamente, contamina a Igreja: a avidez pelo poder.
Tiago e João, filhos de Zebedeu e discípulos de
Jesus, aproximam-se de Jesus para lhe pedirem (ou exigirem: “queremos
que nos faças o que te vamos pedir”) lugares de destaque na glória.
Devemos notar que os versículos
que imediatamente antecedem este trecho, versículos 32 a 34, apresentam Jesus a
falar, pela terceira vez, sobre o seu destino: ser insultado, condenado à
morte, flagelado e morto. É por isso bastante evidente a dicotomia/contradição
entre o caminho que Jesus se propõe trilhar em fidelidade à vontade de Deus e a
ilusão caprichosa que ainda mora no coração dos discípulos.
O que Tiago e João
pedem ou exigem ao Mestre é que os coloque em lugares de destaque, lugares de
comando onde possam dar ordens para que outros lhes obedeçam.
Jesus esclarece-os
que a lógica de Deus, a lógica seguida por Jesus que «não veio para ser servido,
mas para servir e dar a vida pela redenção de todos», é bem diferente da lógica
do mundo: «sabeis que os que são considerados como chefes das nações exercem domínio
sobre elas e os grandes fazem sentir sobre elas o seu poder» porém, «não deve
ser assim entre vós: quem entre vós quiser tornar-se grande, será vosso servo,
e quem entre vós quiser ser o primeiro, será escravo de todos».
Felizmente, «quando
Marcos escreve este trecho, a situação tinha mudado radicalmente: Tiago dera já
a vida por Cristo, morrendo martirizado em Jerusalém (Act 12, 2) e João
dedicava-se generosamente à causa do Evangelho. Acabaram, portanto, por dar
prova de ter entendido o ensinamento do Mestre e a comunidade primitiva nutre
por eles uma veneração imensa. É por este motivo que Lucas evita referir o
episódio e Mateus o modifica, garantindo que foi a mãe deles a avançar com o
pedido e pondo na boca dela palavras mais educadas (Mt 20, 20-24). Os factos,
porém, certamente aconteceram como os conta Marcos».
Marcos quer-nos
fazer refletir sobre a competição pelos lugares de honra e poder que tantas
vezes leva a desentendimentos, invejas e ciúmes dentro da comunidade cristã. Esta fraqueza contagiou os
apóstolos e pode contagiar-nos também a nós. (Infelizmente quanta gente há nas nossas comunidades que serve ativamente mas apenas pelo desejo de protagonismo e de alcançar um lugar onde possa mandar nos outros; e também tanta gente que não serve para servir mas apenas aparece para dar ordens, como se os outros fossem seus escravos). Há que estar atentos e vigilantes,
procurando evitar qualquer ânsia de poder que é contrária à lógica de Deus e destruidora
da comunidade que Jesus nos pede para sermos.
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