XXVII
Domingo do Tempo Comum, ano B
«Em verdade vos digo: Quem não acolher o reino de Deus como uma criança, não entrará nele». Estas palavras de Jesus, contidas no Evangelho por nós acabado de proclamar e escutar, denotam a necessidade que temos de acolher a mensagem do Evangelho e as indicações de Deus não como homens e mulheres autoconvencidos de sermos emancipados, cheios de sabedoria e, por isso, desnecessitados dos conselhos dos pais, mas como crianças que confiam que os pais as protegem e lhes dão bons conselhos que guiam à felicidade ... e que assim acontece com Deus.
Cheios de si mesmos, convencidos de saberem tudo, os fariseus interrogam Jesus – para lhe armarem uma cilada – sobre se “pode um homem repudiar a sua mulher”. Em outras palavras, perguntam a Jesus se é lícito ou não um homem divorciar-se da sua mulher.
Jesus, que veio não
para abolir ou revogar a Lei e os Profetas, mas para cumprir ou completar (cf. Mt 5, 17), leva-os a recordar
o que Moisés lhes tinha ensinado a respeito.
De facto, no Pentateuco
– a Torá, 5 primeiros livros da Tanakh, a Bíblia dos judeus – no Livro do
Deuteronómio, que literalmente significa “Livro da Segunda Lei” e que em
hebraico se chama Devārīm, literalmente "palavras [ditas]",”«as
palavras que Moisés dirigiu a todo o Israel...” (Dt 1,1), ensina no
capítulo 24, versículo 1 que “quando um homem tomar uma mulher e a desposar, se
depois ela deixar de lhe agradar, por ter descoberto nela algo de vergonhoso,
escrever-lhe-á um documento de divórcio, entregar-lho-á na mão e despedir-lha-á
de sua casa”.
Ora, alguns mestres
judaicos, os mais severos, ensinam que o marido só podia repudiar a sua esposa
no caso desta lhe ter sido infiel; mas outros, mais tolerantes e permissivos,
defendiam que para repudiar bastava que a esposa tivesse preparado mal o jantar
ou que o marido tivesse encontrado outra mais atraente. Alguns consideravam uma
obrigação: quando o preceito, dado por Deus, “crescei e multiplicai-vos” (Gn 1,
28) não fosse possível de cumprir, o homem devia repudiar a esposa para poder
ter filhos com outra mulher.
Antes de se
pronunciar sobre o tema, Jesus esclarece que foi por causa da dureza dos seus corações
– dos nossos corações – que Moisés inscreveu na lei a possibilidade do divórcio. Na verdade, o divórcio existia
antes de Moisés e era aceite como legítimo; Moisés procurou discipliná-lo, pôr
limites aos abusos e sobretudo proteger a mulher. Moisés ordenou que, quando
fosse rejeitada por um homem, a mulher recebesse um documento de divórcio
para que pudesse voltar a casar. Acontecia que, quando um homem
expulsava a mulher de casa e ela se juntava com outro homem era acusada de
adultério, delito que merecia a punição de morte por apedrejamento.
Jesus apenas aceita
como vinculativa esta norma formalizada por Moisés porque se alguém se quer
divorciar, pelo menos assim, passando um certificado de divórcio, respeita os
direitos da mulher e salvaguarda que ela possa refazer a sua vida sem ser
acusada de adultério e sofrer a respetiva pena letal. Mas, adverte
Jesus, no princípio, quando Deus os criou, fê-los para se unirem numa só carne.
A tolerância manifestada por Moisés não é expressão do projeto idealizado por
Deus. É apenas um “mal menor” diante da dureza do coração dos homens.
Jesus, decalcando o
projeto revelado por Deus no Livro do Génesis – primeiro livro da Torá e do Pentateuco que compreende
uma exposição mitológica das origens/princípio da criação – ensina: “no
princípio da criação, Deus fê-los homem e mulher; por isso, o homem deixará pai
e mãe e os dois serão uma só carne. Deste modo já não são dois, mas uma só
carne. Portanto, não separe o homem o que Deus uniu”. Desta feita, afirma
decididamente que nenhum tipo de divórcio faz parte do projeto de Deus.
Com Jesus inaugura-se
o Reino de Deus. Cumprem-se as profecias e a cada um é dado “um coração novo e
um espírito novo”, é arrancado de cada um de nós “o coração de pedra e dado um coração
de carne” onde Deus escreverá a sua lei no nosso interior (cf. Ez 36, 26;
Jr 31, 31-34). É hora de rejeitar a lei imperfeita e aderir à lei perfeita,
àquela que corresponde ao plano primordial e ideal desenhado por Deus e que dignifica,
santifica e leva à plenitude a relação entre esposos.
Jesus explica-nos ainda
que “quem repudiar a sua mulher e casar com outra comete adultério contra a
primeira”, acrescentando que “se a mulher repudiar o seu marido e casar com
outro, comete adultério”. Assim Jesus estabelece uma igualdade de direitos e
deveres para homem e mulher, novidade numa cultura onde a figura feminina era tantas
vezes rebaixada.
Cristo não impôs,
com isto, uma lei mais rígida que a de Moisés. Recordou e recomendou o projeto
originário de Deus, no qual o matrimónio é a união indissolúvel de homem e
mulher e não contempla o repúdio e o divórcio.
Cheios de presunção,
convencidos da nossa sabedoria e autoridade, como filhos emancipados que
recusam os conselhos dos pais, podemos rejeitar os conselhos de Jesus e
desprezar os planos que Deus tem para nós. Podemos colocar os nossos “se´s”,
os nossos condicionalismos e as nossas exceções. Mas Jesus retoma a imagem das
crianças e convida os discípulos acolher o reino de Deus como elas. Quem se
sente adulto, quem confia na própria sabedoria, quem se endureceu nas suas
próprias convicções e não aceita que sejam postas em discussão pela palavra de
Deus, não poderá entrar no reino de Deus. Para compreender a indissolubilidade
do matrimónio é preciso voltar a ser criança e confiar nos pensamentos do Pai.
Só quem se sente pequeno, quem acredita no amor do Pai e confia nele, é que se
encontra com a disposição certa para acolher os pensamentos de Deus. Nem todos
podem entendê-los, “mas apenas aqueles a quem isso é dado” (Mt 19, 11), não os
sábios e os inteligentes, mas os pequeninos (cf. Mt 11, 25).
Naturalmente que, como
só Deus conhece a fragilidade e o interior de cada pessoa, nenhum de nós se
pode levantar como juiz dos nossos irmãos divorciados. Nenhum de nós se ache no
direito de avaliar as suas culpas e pronunciar condenação. Porventura nós
também tenhamos culpa, por pouco termos feito para evitar o desmoronar dos seus
matrimónios ou, pior ainda, por termos instigado à infidelidade e dissolução do
amor que os unia. Que o Senhor nos ajude a acompanhá-los com sabedoria,
compreensão e paciência para que, com o nosso auxílio e a inspiração do
Espírito Santo, possam encontrar de novo os seus caminhos de santificação. Que
o Senhor abençoe todos os matrimónios com a inabalável fidelidade conjugal,
os ajude a manter viva a chama do seu amor e a edificarem famílias felizes e
devotadas aos ensinamentos de Deus.
(Inspirado em “O banquete da Palavra, ano B”
de Fernando Armellini)
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