(artigo de opinião em vista de estimular a reflexão)
Pensei seriamente se devia escrever algo sobre este tema. Primeiro porque, vivendo num país cujo a Constituição assegura «o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio […], sem impedimentos nem discriminações» (artigo 37.º), aqueles que se autoproclamam defensores da liberdade e da democracia teimam em levantar esta bandeira constitucional apenas quando as opiniões estão em consonância com as suas, querendo calar e censurar todos os que pensam diferente. Por este motivo, desde já, agradeço àqueles que não queiram respeitar a minha liberdade de expressão o favor de me ignorarem em vez de me atacarem. Em segundo, porque sei que poderei defraudar as espectativas de alguns que, sabendo o ministério que exerço, esperam que faça uma apologia incondicionada (aguerrida e violenta) à Igreja Católica e à sua doutrina, esquecendo-se de que já lá vão os tempos em que trono e altar andavam colados, que o anúncio da Boa-Nova já não se faz pela força bélica das cruzadas e que já não vivemos os tempos da ocidental cristandade (em que todos entendiam a mesma linguagem da fé). A estes quero esclarecer o seguinte: Amo Jesus Cristo e os Santos Evangelhos e, por isso, amo também a Santa Igreja, esposa por Ele edificada. Isto não significa que seja cego à existência de outros homens e mulheres que, vivendo no mesmo país que eu, se regem por credos diferentes do meu ou até pela ausência da fé. Por isso, a Constituição diz, e bem, que «as igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado» (artigo 41.º). Assim, quando se trata de discutir política, tenho de ser consciente de que as ideias que defendo como lei para o Estado não podem subjugar todos à doutrina da minha Igreja, a qual servindo de guia para viver a minha vida não tenho direto de impor aos não-católicos (outros cristãos, judeus, muçulmanos, ateus, etc.). Afinal, nada me agradaria que o Estado impusesse leis que me impedissem de viver «a liberdade de consciência, de religião e de culto» (artigo 41.º), por exemplo, obrigando-me às leis islâmicas ou às opiniões dos ateus intolerantes (que querem derrubar todos os sinais de religiosidade e apelidam, erroneamente, o homem religioso de ser supersticioso, irracional e outras que tais).
Postos estes dois princípios, que peço que releia com a máxima atenção, passo agora ao tema que me propus.
Em Portugal vivemos, pelo menos formalmente, numa democracia. Neste modelo político, para bem e para mal, o que rege é a vontade da maioria. Todavia, há outro princípio que deve vigorar nos regimes democráticos e livres mas que, infelizmente, é esquecido pela maioria: a lei deve ser feita procurando garantir a maior liberdade possível a cada cidadão para que este possa “ser livre” nas suas opções, tomando “as rédeas” sobre a sua própria vida sem pôr em causa a mesma liberdade dos outros cidadãos e a salutar convivência social. Está aqui em causa o problema filosófico da conjugação de uma “ética de mínimos” com uma “ética de máximos”. Por favor, se não conhece estes dois conceitos faça uma rápida pesquisa para se elucidar sobre eles. Ora, para bem e para mal, a maioria dos portugueses, isto é, dos portugueses recenseados que foram às urnas, votou em partidos cujo programa político contemplava a legalização da eutanásia, sendo que «os partidos políticos concorrem para a organização e para a expressão da vontade popular» (artigo 10.º da CRP). Mesmo assim, as cores políticas deixaram a votação plenária do tema à liberdade de consciência de cada deputado (representante do povo que o elegeu), fora da disciplina de voto partidário, normalmente utilizada para submeter cada deputado a votar a favor do programa do partido pelo qual foi eleito. É verdade que, num tema como este, poderia ser posto em atividade o mecanismo do referendo, proposto nos artigos 10.º e 115.º da Constituição. Note-se que, nesse caso, fosse o resultado favorável ou não à aprovação da eutanásia, apenas se contemplaria a vontade da maioria, privando as minorias da liberdade de tomar individualmente a opção em fazer uso de uma liberdade individual, neste caso, aquela que agora (ou em breve) se tornou legal e possível no serviço nacional de saúde. Note-se ainda que essa maioria poderia estar pouco consciencializada sobre a matéria que iria votar ou bastante dominada pelas correntes propagandísticas. O Parlamento, no entanto, na sua maioria, entendeu ter legitimidade para legislar sobre a temática, em representação do povo português, autorizado pelos programas partidários sufragados nas últimas legislativas. Talvez não tenham, por esse motivo, razão para reclamar da decisão aqueles que, não votando, deixaram aos outros o poder de decisão ou aqueles que, votando, votaram a favor desses mesmos programas partidários. Todavia, houve também os deputados que dececionaram o seu eleitorado, o qual esperava da parte daqueles uma postura diferente. Talvez, por aí, alguns eleitores ainda tenham razão para reclamar. Razão essa, de forma redobrada, têm todos aqueles que votaram em programas políticos opostos à eutanásia ou que, sendo peritos na matéria (médicos e enfermeiros, especialistas em bioética, especialistas em cuidados continuados e paliativos, etc.), não se sentiram ouvidos ou foram-no só para “português ver”.
Ok, provavelmente está a pensar que eu sou defensor da eutanásia. Engana-se: sou contra! Os meus princípios, a minha fé, o meu conhecimento e reflexão levam-me a crer firmemente que a eutanásia não é a solução! Mas isto não me legitima a OBRIGAR todos a pensar como eu ou a ficarem legalmente sujeitos àquilo que eu defendo. Impelem-me, no entanto, o meu dever cívico e a minha solidariedade com a família humana, A QUE MANIFESTE os meus argumentos, favoráveis àquilo que acho justo, bom e concorde com a verdadeira humanização e desfavoráveis àquilo que acho nefasto e erróneo, deixando aos outros a OPÇÃO LIVRE de os acolherem e aderirem à minha opinião ou de optarem por aquela que contesto.
E agora sim, vou expor a minha opinião sobre a eutanásia em si e sobre a sua despenalização legal no contexto português atual. Só lê quem quer!
Em termos meramente profanos, isto é, descolados/afastados do altar:
1 – A medicina e a ciência em geral devem estar ordenadas ao melhoramento da qualidade de vida e à sua preservação. Significa isto que o seu objetivo deve ser o de atenuar a dor, de curar a doença, de melhorar as condições de vida das pessoas e de proteger a vida. Deve ser esta a razão do seu trabalho e da sua pesquisa. Foi este o intuito genuíno do nascimento das ciências médicas, tal como as conhecemos: melhorar e prolongar a vida, não acabar com ela!
2 – A dor maior que uma pessoa pode ter, a qual não pode ser aliviada com analgésicos, é a dor de não se sentir amada, querida, desejada… a dor de se sentir sozinha no mundo ou de se sentir um fardo para os outros que abafa a esperança e o desejo de viver. Ninguém tem razões para viver se não tem ninguém à espera que o ame e que partilhe consigo o seu tempo, atenção e afeto. Por isso, importa solidificar - humanizando - as nossas relações humanas: amar verdadeiramente quem temos na nossa vida e ter coragem de demonstrar esse amor, sobretudo para com os doentes. Está mais que na altura de pôr de lado formas de convivência que aplicam a lei do descarte às vidas humanas: “enquanto me és útil quero saber de ti; ficaste doente e incapacitado, agora és um peso para mim: desenrasca-te!”. Pedir a eutanásia pode ser um clamar encoberto: um pedido por amor. Pedir a eutanásia pode ser um indício, mesmo que inconsciente, de quem se acha inútil ou um empecilho na vida dos outros.
3 – A despenalização da eutanásia é um erro político crasso num país que não assegura os cuidados essenciais de saúde e paliativos àqueles que os reclamam. [Reagentes:] A falta de assistência médica ou o atraso no seu acesso, que infelizmente são tão evidentes em Portugal com as longas filas de espera nos hospitais, contribuem para a degradação da saúde das populações, sobretudo os mais pobres que não conseguem ter acesso aos cuidados de saúde em tempo útil, tornando a deteção de doenças demasiado tardia, o que reduz ou anula as possibilidades de cura. Ora, liberalizar a eutanásia sem antes solidificar e tornar célere o sistema gratuito de saúde e implementar uma rede de cuidados paliativos capaz de corresponder às necessidades do país, é dizer aos portugueses: “nós não lhe damos oportunidade de cura nem suporte na sua doença mas, quando já não for possível tratá-lo, vemos de bom grado que você nos peça a morte”. [Produto da reação:] É mentira, portanto, a afirmação de que quem pede a eutanásia é livre no seu pedido, pois a conjuntura atual induz para isso! Infelizmente, os políticos portugueses estão mais preocupados em redigir a lei da eutanásia, que acham ser o assunto mais urgente num tempo em que os óbitos subiram num número colossal (em que milhares de consultas médicas ficaram por fazer, em que milhares de rastreios de deteção de doenças – como o cancro – ficaram por concretizar, em que tratamentos de cura e cirurgias ficaram suspensos), do que em redigir um plano de reforço do decadente serviço nacional de saúde e da deficitária rede de cuidados continuados e paliativos. Portugal não quer cuidar, no entanto quer matar! Provavelmente, assim poupam-se uns tostões nos ministérios da saúde e da segurança social, mas é à custa de vidas humanas. Espero e rezo para que o diabo não se lembre de adicionar mais reagentes a esta equação química, com o objetivo específico de aumentar os produtos da reação.
4 – Estamos a romper com um conceito que levou séculos de evolução até ser globalmente aceite pela sociedade: a dignidade inalienável e inviolabilidade da vida humana, de cada vida humana. Estamos a aniquilar o que gerações lutaram por universalizar. Estamos a aceitar o suicídio como algo normal. Estamos a convidar profissionais de saúde a serem homicidas, contrariando as antigas diretrizes médicas: «Mesmo instado, não darei droga mortífera nem a aconselharei; também não darei pessário abortivo às mulheres» (Juramento de Hipócrates, 1771), ou, «A Saúde do meu Doente será a minha primeira preocupação. […] Guardarei respeito absoluto pela Vida Humana desde o seu início, mesmo sob ameaça e não farei uso dos meus conhecimentos médicos contra as leis da Humanidade» (Fórmula de Genebra, 1983). Poderá ser apenas um princípio, ou será já um estágio intermédio ou avançado, do surgir de problemas éticos que subjetivizam o valor da vida humana à mercê de uma cultura do descarte, da morte, da relatividade. Somos juízes impiedosos diante das decisões macabras dos nossos antepassados, julgando-os segundo os critérios do nosso século e não segundo aqueles do século em que eles viveram: espero que as gerações futuras tenham a mesma postura para com este tipo de decisões de promoção da morte tomadas pela nossa geração! Será um sinal de uma evolução civilizacional, na vez de um retrocesso como este a que agora cedemos.
5 – Vivemos tempos de instalada incoerência. Privilegiam-se ao absurdo os “direitos” e privilégios dos seres infra-humanos, que adquirem na vida social o lugar das pessoas, ao passo que as pessoas passam a ser vistas como meros números ou coisas. Nutre-se uma enorme sensibilidade para com os entes animais e vegetais mas uma profunda indiferença e desprezo pelos entes da nossa carne e da nossa família humana. Elevamos animais a membros de família, damos-lhes afetos e até nomes humanos, uma cama aconchegante e às vezes um quarto nas nossas casas, e em contrapartida tratamos idosos e doentes como tralha. Sou adepto da humanização do Homem, também na sua relação de respeito e de cuidado para com os outros seres vivos e o planeta, mas não percebo a esquizofrenia com que se absolutiza o valor da vida infra-humana e relativiza o da humana, como se pode ser contra o aborto ou a eutanásia nos animais e ser-lhe favorável nos humanos.
(etc.)
Num contexto da moral cristã e vinculativo para os católicos:
Primeiro, gostaria de reafirmar que sou católico e que professo a fé católica; que acredito, em conformidade com o Magistério da Igreja e a minha inclinação natural, que Deus é o autor e Senhor da vida. A Ele cabe o direito de decidir dar-lhe início e de pôr-lhe termo, direito esse que por mais que o Homem reclame, nunca conseguirá obter de forma absoluta mas apenas de forma co-participativa. Por isso, em conformidade com o Catecismo, considero que praticar a eutanásia «constitui um assassínio gravemente contrário à dignidade da pessoa humana e ao respeito do Deus vivo, seu Criador» (CIC 2277). Peço, por isso, aos católicos (em especial aos médicos) que, em ordem à salvação da sua alma e da alma dos seus irmãos, não sejam coniventes com este atentado contra Deus e contra a dignidade da vida dos humanos, nossos irmãos, selada com o selo divino: «assassino e quantos voluntariamente colaboram no assassinato cometem um pecado que brada ao céu» (CIC 2268). Aos católicos apelo a que, com aqueles que têm uma vida deficiente ou enfraquecida pela doença, se empenhem no exercício de respeito especial e verdadeira compaixão cristã (cf. CIC 2276). Aos católicos que pensam em pedir a eutanásia para si próprios, ou que a incentivam, quero apelar a fixarem de novo, com renovada fé e esperança, os olhos na Cruz de Cristo e a contemplarem o mistério doloroso da sua Paixão Redentora que, no entanto, culmina na alegria eterna. Não os condenando, pois a Igreja condenando o pecado espera sempre a conversão dos pecadores, apelo a que tomem consciência de que estão perante um desejo consciente (por isso gravemente imoral) de suicídio, que contraria a inclinação natural do ser humano para conservar e perpetuar a sua vida; é gravemente contrário ao justo amor de si mesmo; ofende igualmente o amor do próximo, porque quebra injustamente os laços de solidariedade com as sociedades familiar, nacional e humana, em relação às quais temos obrigações a cumprir; e é contrário ao amor do Deus vivo (cf. CIC 2281). Além de ser um desejo para cometer pecado ou favorável a ele, assume ainda a gravidade do escândalo (cf. CIC 2282; Mt 18, 6), sobretudo naqueles «que estabelecem leis ou estruturas sociais conducentes à degradação dos costumes e à corrupção da vida religiosa, ou a “condições sociais que, voluntária ou involuntariamente, tornam difícil e praticamente impossível uma conduta cristã conforme aos mandamentos”» e ainda, «manipulando a opinião pública, a desviam dos valores morais» (CIC 2286).
Assim, mesmo que a lei civil mais uma vez venha liberalizar atos imorais diante da lei divina, e até da lei natural [Como o fez, a meu ver com ultra gravidade, em relação ao aborto: «A vida humana deve ser respeitada e protegida, de modo absoluto, a partir do momento da conceção. Desde o primeiro momento da sua existência, devem ser reconhecidos a todo o ser humano os direitos da pessoa, entre os quais o direito inviolável de todo o ser inocente à vida» (CIC 2270). «A vida humana é inviolável» (CRP, artigo 24.º). «A integridade moral e física das pessoas é inviolável» (CRP, artigo 25.º)], peço aos católicos que se esforcem pela coerência na sua condição de Filhos de Deus, luz do mundo e sal da terra (cf. Mt 5)! «Porque fostes comprados por alto preço, glorificai pois a Deus no vosso corpo» (1 Cor 6, 20), «não vos torneis escravos de homens!» (1 Cor 7, 23). «Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus» (Mt 5, 16).
Nota: Todas e quaisquer conclusões retiradas implicitamente do conteúdo deste texto são da responsabilidade do autor das mesmas com as quais não sou obrigado a concordar. O texto lê-se no seu conjunto, sem a seleção a gosto de frases isoladas.
Siglário: CIC – Catecismo da Igreja Católica | CRP – Constituição da República Portuguesa
Anexo – Datas Relevantes:
1. + Em 1867 - Lei de 01 de Julho desse ano - o Parlamento Português foi o primeiro do mundo a defender o carácter inviolável da vida humana, abolindo a "Pena de Morte" para criminosos.
2. - Em 2007 - Lei n.º 16/ 2007 - o Parlamento Português legalizou a morte de vidas inocentes, com a aprovação o aborto.
3. - Em 2021 - 29 /01/ 21 - O Parlamento Português legalizou a morte a pedido, com a Eutanásia. É o 4.o país da União Europeia a entrar por este caminho, depois da Holanda, a Bélgica e o Luxemburgo.
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