Tenho-me deparado com algumas leituras que visam inflamar hostilidades entre crentes de diversas religiões, em particular, no que me toca mais concretamente, entre o cristianismo e o judaísmo. Alguns interrogam-se e escandalizam-se com a minha postura de busca de diálogo, respeito e tolerância, achando que desconheço que do outro lado, do lado dos meus interlocutores, há alguns que se esforçam por uma postura completamente díspar da minha: inflamando humilhações contra a minha crença.
Na verdade conheço suficientemente as menções blasfémias feitas por
alguns judeus e rabinos, no Talmude ou em Sefer Toledoth Yeshu
sobre Jesus (Yeshu, Yeshu ha-Notzri, ben Stada, ben
Pandera, etc.), acompanhadas pelas difamações de Maria, dos discípulos e do
cristianismo. Confesso que isso em nada me agrada mas, mesmo despertando em mim
sentimentos de compaixão e vontade de desagravo dos sagrados Corações de
Jesus e Maria, em nada me enfurece ou desanimam (há que procurar distinguir os
sinais do Bom Espírito, o Espírito Santo, dos do mau espírito). Não as quero
aqui mencionar, até porque a crítica é díspar na sua atribuição a Jesus Cristo,
mas sobre tudo para não lhes “dar crédito” e evitar inflamar oposições. Se
quiser conhecer mais sobre isto, veja em: “Jesus in the Talmud” de Peter
Schäfer ou “Jesus in Talmud” de Octavio Botelho, mas não deixe que o seu coração
se tolde e enfureça pelos impulsos do divisor e senhor das trevas.
No
entanto, sinto que conheço ainda melhor o que o Sagrado Concílio Vaticano II
ensina aos católicos na declaração “Nostra aetate”[1] sobre
o diálogo inter-religioso. Lamento que seja um documento quase desconhecido por
uma grande fatia dos católicos e com ultra-gravidade, na minha opinião, por alguns
seminaristas, religiosos/as e ministros ordenados. Lamento também que haja ainda
quem prefira continuar a utilizar uma linguagem pouco simpática quando se refere ao povo judeu, como «pérfidis
Judáeis»[2]
e «pro illíus pópuli obcæcatióne», em vez de nas orações pedir ao Senhor
que «o faça progredir no amor do seu nome [de Deus] e na fidelidade à sua
aliança»[3].
Profere,
a dita declaração, que a Igreja «na sua função de fomentar a união e a caridade
entre os homens e até entre os povos, considera primeiramente tudo aquilo que
os homens têm de comum e os leva à convivência» (n.1) e que, no que toca a
outras religiões, «a Igreja católica nada rejeita do que nessas religiões
existe de verdadeiro e santo» (n.2). «No entanto, ela anuncia, e tem mesmo
obrigação de anunciar incessantemente Cristo, «caminho, verdade e vida» (Jo.
14,6), em quem os homens encontram a plenitude da vida religiosa e no qual Deus
reconciliou consigo todas as coisas. / Exorta, por isso, os seus filhos a que,
com prudência e caridade, pelo diálogo e colaboração com os sequazes doutras
religiões, dando testemunho da vida e fé cristãs, reconheçam, conservem e
promovam os bens espirituais e morais e os valores sócio-culturais que entre
eles se encontram» (n.2).
O
mesmo documento conciliar prossegue: «Sondando o mistério da Igreja, este
sagrado Concílio recorda o vínculo com que o povo do Novo Testamento está
espiritualmente ligado à descendência de Abraão. / Com efeito, a Igreja de
Cristo reconhece que os primórdios da sua fé e eleição já se encontram, segundo
o mistério divino da salvação, nos patriarcas, em Moisés e nos profetas.
Professa que todos os cristãos, filhos de Abraão segundo a fé, estão incluídos
na vocação deste patriarca e que a salvação da Igreja foi misticamente
prefigurada no êxodo do povo escolhido da terra da escravidão. A Igreja não
pode, por isso, esquecer que foi por meio desse povo, com o qual Deus se
dignou, na sua inefável misericórdia, estabelecer a antiga Aliança, que ela
recebeu a revelação do Antigo Testamento e se alimenta da raiz da oliveira
mansa, na qual foram enxertados os ramos da oliveira brava, os gentios. Com
efeito, a Igreja acredita que Cristo, nossa paz, reconciliou pela cruz os
judeus e os gentios, de ambos fazendo um só, em Si mesmo. / Também tem sempre
diante dos olhos as palavras do Apóstolo Paulo a respeito dos seus
compatriotas: “deles é a adoção filial e a glória, a aliança e a legislação, o
culto e as promessas; deles os patriarcas, e deles nasceu, segundo a carne,
Cristo” (Rom. 9, 4-5), filho da Virgem Maria. Recorda ainda a Igreja que os
Apóstolos, fundamentos e colunas da Igreja, nasceram do povo judaico, bem como
muitos daqueles primeiros discípulos, que anunciaram ao mundo o Evangelho de
Cristo. / Segundo o testemunho da Sagrada Escritura, Jerusalém não conheceu o
tempo em que foi visitada; e os judeus, em grande parte, não receberam o
Evangelho; antes, não poucos se opuseram à sua difusão. No entanto, segundo o
Apóstolo [S. Paulo], os judeus continuam ainda, por causa dos patriarcas, a ser
muito amados de Deus, cujos dons e vocação não conhecem arrependimento. Com os
profetas e o mesmo Apóstolo, a Igreja espera por aquele dia, só de Deus
conhecido, em que todos os povos invocarão a Deus com uma só voz e “o servirão
debaixo dum mesmo jugo” (Sof. 3,9). / Sendo assim tão grande o património
espiritual comum aos cristãos e aos judeus, este sagrado Concílio quer fomentar
e recomendar entre eles o mútuo conhecimento e estima, os quais se alcançarão
sobretudo por meio dos estudos bíblicos e teológicos e com os diálogos
fraternos. / Ainda que as autoridades dos judeus e os seus sequazes urgiram a condenação
de Cristo à morte não se pode, todavia, imputar indistintamente a todos os
judeus que então viviam, nem aos judeus do nosso tempo, o que na Sua paixão se
perpetrou. E embora a Igreja seja o novo Povo de Deus, nem por isso os judeus
devem ser apresentados como reprovados por Deus e malditos, como se tal coisa
se concluísse da Sagrada Escritura. Procurem todos, por isso, evitar que, tanto
na catequese como na pregação da palavra de Deus, se ensine seja o que for que
não esteja conforme com a verdade evangélica e com o espírito de Cristo. / Além
disso, a Igreja, que reprova quaisquer perseguições contra quaisquer homens,
lembrada do seu comum património com os judeus, e levada não por razões
políticas mas pela religiosa caridade evangélica, deplora todos os ódios, perseguições
e manifestações de antisemitismo, seja qual for o tempo em que isso sucedeu e
seja quem for a pessoa que isso promoveu contra os judeus. / De resto, como a
Igreja sempre ensinou e ensina, Cristo sofreu, voluntariamente e com imenso
amor, a Sua paixão e morte, pelos pecados de todos os homens, para que todos
alcancem a salvação. O dever da Igreja, ao pregar, é portanto, anunciar a cruz
de Cristo como sinal do amor universal de Deus e como fonte de toda a graça»
(n.4).
Finalmente:
«Não podemos, porém, invocar Deus como Pai comum de todos, se nos recusamos a
tratar como irmãos alguns homens, criados à Sua imagem. De tal maneira estão
ligadas a relação do homem a Deus Pai e a sua relação aos outros homens seus irmãos,
que a Escritura afirma: “quem não ama, não conhece a Deus” (1 Jo. 4,8). / Carece,
portanto, de fundamento toda a teoria ou modo de proceder que introduza entre
homem e homem ou entre povo e povo qualquer discriminação quanto à dignidade
humana e aos direitos que dela derivam. / A Igreja reprova, por isso, como
contrária ao espírito de Cristo, toda e qualquer discriminação ou violência
praticada por motivos de raça ou cor, condição ou religião. Consequentemente, o
sagrado Concílio, seguindo os exemplos dos santos Apóstolos Pedro e Paulo, pede
ardentemente aos cristãos que, “observando uma boa conduta no meio dos homens”
(1 Ped. 2,12), se é possível, tenham paz com todos os homens, quanto deles
depende, de modo que sejam na verdade filhos do Pai que está nos céus» (n.5).
O catolicismo, e o cristianismo em geral, em nada ficam inferiorizados quando promovem o diálogo com as outras religiões no respeito pelas suas especificidades. Aliás, levam em consideração a verdade fundamental da nossa fé de que Deus é Pai de toda a humanidade e promovem oportunidades para que o Evangelho de Cristo possa ser conhecido por todos os povos até que, por vontade humana e graça de Deus, o dom da plenitude da fé em Jesus Cristo, a Palavra de Deus encarnada, seja acolhido por todos aqueles que o Pai providente a Ele quiser atrair (cf. João 6, 44). Tal não significa a promoção de um diálogo inter-religioso pobre, com a relativização do valor das especificidades de cada crença. Afinal, onde conceitos opostos têm igual valor e verdade, no fundo nenhum deles é realmente bom e verdadeiro e o risco de blasfémia e sacrilégio é eminente tal como o risco de ambas as partes acabarem humilhadas. Significa, sim, a busca do respeito e tolerância mútuos, a cooperação na edificação do bem dos povos e da criação, sobre tudo dos mais desfavorecidos e marginalizados[4], a abertura acolhedora ao outro nas suas peculiaridade e diferenças, a vontade de conhecer e valorizar o que nos é comum e nos une, o que é verdadeiro e santo, sem deixar que as diferenças nos anulem e nos dissolvam numa amálgama sem sentido. Evidentemente que há aspetos que teremos de rejeitar por se oporem à verdade e à santidade, mas isso terá de ser sempre feito com prudência e caridade. Para nós Jesus Cristo será sempre o nosso Senhor e Salvador mas não temos como não nos expormos à crítica e às opiniões opostas, afinal elas coexistem connosco no mundo em que vivemos e fazem parte da missão a que fomos chamados de sermos testemunhas diante de todos os povos até ao final dos tempos (inclusive diante dos que pensam diferente de nós e não acolhem o Evangelho).
Assim
nos ensina o tesouro da Escritura:
«Bem-aventurados
sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal
contra vós por minha causa.
Exultai
e alegrai-vos, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim
perseguiram os profetas que foram antes de vós.
Vós
sois o sal da terra; e se o sal for insípido, com que se há-de salgar? Para
nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos homens.
Vós
sois a luz do mundo; não se pode esconder uma cidade edificada sobre um monte;
Nem
se acende a candeia e se coloca debaixo do alqueire, mas no velador, e dá luz a
todos que estão na casa.
Assim
resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras
e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus.
Não
cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim abrogar, mas cumprir.
Porque
em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um til
jamais passará da lei, sem que tudo seja cumprido.
[…]
Ouvistes
que foi dito: Olho por olho, e dente por dente.
Eu,
porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face
direita, oferece-lhe também a outra;
E,
ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa;
E,
se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas.
Dá a
quem te pedir, e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes.
Ouvistes
que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo.
Eu,
porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei
bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para
que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus;
Porque
faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e
injustos.
Pois,
se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos também
o mesmo?
E,
se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os
publicanos também assim?
Sede
vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus»
(Mateus
5, 1-16; 38-48).
[1] Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651028_nostra-aetate_po.html
[2] Texto da Oração Universal de Sexta-feira Santa, celebração da Paixão do Senhor do Missale Romanum ex decreto Concilii Tridentini. (traduzido livremente como: pérfido = desleal, doloso, inconfidente, infiel, traiçoeiro, traidor | ou: obstinado = implacável, inflexível, intransigente, irredutível, persistente, pertinaz, relutante, renitente, rígido, teimoso).
[3] Atual texto da Oração Universal de Sexta-feira Santa, celebração da Paixão do Senhor.
[4] Como conheço que em Portugal tem acontecido na cooperação entre comunidades judaicas e dioceses católicas.
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