Homilia da Ordenação Presbiteral do Diác. João Miguel Pereira; Lamego, 4 de Julho de 2021

A Palavra de Deus lida, escutada e saboreada é o alimento e a bússola permanente da vida do Povo de Deus, de todos os que em algum ministério O servem, por maioria de razão diáconos, presbíteros e bispos. Por isso também refere o Ritual Romano, acerca da ordenação dos presbíteros, que o bispo faz a homilia dirigindo-se ao Povo e aos eleitos, falando-lhes do ministério dos presbíteros a partir do texto das leituras lidas na Liturgia da Palavra. É o que tento sempre fazer nestas circunstâncias das ordenações sacerdotais.

Caríssimos fiéis leigos, caríssimo eleito João Miguel Pereira, caríssimos sacerdotes e seminaristas, consagrados, todos, todos vós. Se é assim, devemos então começar com a Palavra de Deus.

Diz o Evangelho de hoje que Jesus saiu dali, da casa de Jairo, em Cafarnaum, onde o tínhamos deixado no domingo passado e dirigiu-se com os seus discípulos para a sua pátria – curioso que o texto diga mesmo pátria evitando o termo habitual de povoação, lugar ou aldeia, que seria mais normal. Dirigiu-se para a sua pátria. Não se trata portanto de um episódio local, acontecido numa qualquer aldeia no interior da Palestina, mas de um acontecimento nacional por lepse ou indicador do que se vai passar com Jesus durante a sua vida, a sua vida inteira, no país de Israel. O que acontece neste pequeno episódio de hoje é o que se vai acontecer a Jesus, dia após dia, lugar após lugar, até à cruz: a rejeição.

Vem o sábado e Jesus – como para nós o domingo –, judeu fiel, como todos os judeus fiéis vai à sinagoga, escuta a canta a Palavra de Deus… e reza e ensina. A sinagoga estava cheia e os muitos ouvintes, como diz o texto, ouviram Jesus com espanto e aplauso. Mas uma dúvida começou a germinar e a vir ao de cima. Como podia ser? De onde lhe vinha aquela sabedoria e os prodígios que fazia? Como é que isto podia ser? Então não era Ele o carpinteiro, filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E não conhecemos nós também as suas irmãs? E não deram crédito a Jesus. E rejeitaram-no. Como eu disse, este primeiro episódio de rejeição de Jesus na sua pátria – e é por isso que o apóstolo usa “pátria” de propósito para alargar a dimensão deste episódio a todo o país – é um indicador do que vai acontecer a Jesus até ao fim, até à Cruz.

Permiti agora, amados irmãos e irmãs no batismo e no sacerdócio, caríssimo eleito, que acrescente o seguinte: aqueles muitos ouvintes, que naquele sábado foram à sinagoga para escutar a Palavra de Deus e rezar, não eram gente má e renegada. Eram judeus fiéis, que acreditavam em Deus e viviam piedosamente. E é para salvar a honra de Deus, o Deus Altíssimo, que eles rejeitam Jesus… por ser tão cá de baixo, por ter uma família como nós, por trabalhar como nós, por ser demasiado igual a nós. É por isso que Jesus é rejeitado. Ainda que fale a Palavra de Deus de uma forma verdadeiramente única e nova, Jesus é rejeitado por ser tão igual a nós … não tinha crédito. Tinha de ser alguém que viesse lá de cima para ter autoridade para falar de Deus.

Notai, meus irmãos. Penso que nós aqui também somos todos fiéis e rezamos e vimos aqui para cantar, para rezar e para viver estes momentos de relação íntima com Deus - e hoje, neste dia festivo muito especial para a nossa diocese – e todavia também, por vezes, desprezamos os pequeninos. Porquê?... porque que não prestam. São interessantes mas não têm nada para dizer. Não vale a pena. Não prestam. Jesus diz coisas lindíssimas mas é tão igual a nós que nós temos de salvar a honra de Deus – do Deus altíssimo – e por isso Ele não devia falar em aramaico, não devia, como nós falar em português, devíamos falar uma linguagem incompreensível para se perceber que isto vinha de Deus.

Às vezes caímos nestes pecados mortais porque [não sabemos fazer] como quando Jacob viu o seu irmão Esaú disse “no teu rosto eu vejo o rosto de Deus” (Gn.33). Sim, temos de olhar uns para os outros com muito mais qualidade, com muito mais carinho, com muito mais primor. É assim o nosso Deus que se quis fazer ver a nós no rosto de Jesus, tão pequenino, que nasceu numa família como nós e que vive no meio de nós como um de nós: fez-se nosso irmão.

Amados irmãos e irmãs, caríssimo eleito: os judeus fiéis não sabiam, mas nós sabemos bem que Deus não anda lá muito a cima das nossas cabeças mas enviou o seu Filho ao nosso mundo, nascido de uma mulher, um de nós, que veio habitar no meio de nós. Temos portanto de andar muito atentos, porque podemos tropeçar n´Ele a toda a hora.

São Paulo, fidelíssimo judeu, como sabemos, também não sabia que Deus andava aqui tão perto de nós e defendeu com todas as suas forças a honra do Deus altíssimo contra uma seita de cristãos – assim se falava – que anunciava que Deus tinha descido ao nosso mundo para viver no meio de nós. Ora, isto era um absurdo. São Paulo lutou contra esta seita cristã, como sabeis, com todas as suas forças. E outra vez… para salvar a honra do Deus altíssimo, Paulo perseguiu energicamente esta nova seita dos cristãos. Não conseguiu os seus intentos porque foi literalmente rasteirado por Jesus e caiu de si a baixo. Não caiu de um cavalo a baixo. Como sabeis, Paulo nunca andou de cavalo, porque os fariseus não andam de cavalo nem os judeus. Portanto não caiu de um cavalo a baixo. Nem nenhum texto fala que ele tenha caído dum cavalo. Ele caiu foi de si a baixo, da sua importância a baixo, da sua altura a baixo, caiu de si a baixo. E foi forçado a compreender que de facto Deus pode andar também cá por baixo, no meio das nossas dores e alegrias, no meio das nossas pandemias. Anda cá por baixo de tal maneira que até passou uma rasteira a Paulo. E quando Paulo se viu caído de si a baixo, percebeu que se calhar andou enganado muito tempo. Ele que era um doutor, andou enganado muito tempo. E quando percebeu isso, bem sabeis que se dedicou completamente à causa de Jesus.

Paulo é fraco, ele diz: doente, perseguido, hostilizado e fraco. Ezequiel é fraco como o profeta é sempre fraco, porque tem de dizer aquela Palavra e não lhe compete argumentar a favor nem contra aquela Palavra. Ele diz aquela Palavra e depois sujeita-se às reações das pessoas que eram aquela casa de rebeldes que se atiravam contra ele para o encostarem à parede. Não! Não é o profeta quem encosta as pessoas à parede! É o povo rebelde quem encosta o profeta à parede.

Ezequiel, um profeta fraco, no meio dos exilados na Babilónia, por noventa e três vezes – hoje ouvimos uma, na leitura de hoje do capítulo segundo – é interpelado por Deus como “filho do homem”, “filho do homem”, “filho do homem”... É sempre esta locução que Deus usa para falar com Ezequiel. Nunca diz “Ezequiel”. Diz “filho do homem”. “Filho do homem” implica a nossa fraqueza de termos nascido numa família. Como Jesus na família que tinha, mas não tinha crédito porque nasceu numa família como nós. Ezequiel também, “filho do homem”, por noventa e três vezes. Jesus, nos quatro evangelhos, diz de si mesmo por oitenta e uma vezes “o filho do Homem”. Jesus também é o “filho do Homem”, nasce numa família, é fraco… é fraco… mas tem a força de Deus!

Estes homens fracos são os mais fortes, não porque tem força em si mas porque recebem a força de Deus. Caríssimo eleito, nunca te esqueças disto: Fracos podemos ser, mas sabemos bem que a força de Deus nos acompanha. Paulo é fraco, Ezequiel é fraco, o João é fraco. Nós somos fracos, mas Deus é forte! E todos os dias diz a cada um de nós: “basta-te a minha graça, porque Eu estou contigo”. É assim que Deus fala connosco, com cada um de nós, todos os dias: “basta-se a minha graça, porque Eu estou contigo. Todos temos de aprender com Paulo e Ezequiel a dizer: “quando eu sou fraco então é que sou forte”.

Não importa esgrimir armas ou argumentos, importa apresentar a morada de Deus às pessoas, importa aproximar-se das pessoas com ternura e afeto, importa sim descer cá em baixo e dizer aos nossos irmãos que Deus anda aqui, aqui no chão, no meio de nós… e não está escondido lá nos tetos da Igreja Catedral de Lamego. Anda aqui em baixo e pode passar-nos uma rasteira de vez enquanto…

Penso que também passou uma rasteiras ali ao João e é por isso que ele está aqui. Se calhar não estava, se Deus não lhe tivesse passado essas rasteiras. Porque Deus anda também cá por baixo. De facto ele é prova, nós somos a prova disso […]

Amados irmãos e irmãs, caríssimo eleito. João é o seu nome e significa “Deus faz graça”, “Deus faz graça” é isso que é Yôhanan: “Deus faz graça”. Vive assim, meu amado irmão João, vive assim: fazendo graça, deixando Deus fazer graça. Vive com amor, estremecimento, espanto, e emoção… Um presbítero. Meu querido amigo João e irmão, um presbítero no dia em que perder o estremecimento, o espanto e a emoção o que é que fica? Não fica nada. Um cristão, um cristão, meus amigos e irmãos, no dia em que perder o estremecimento, o espanto e a emoção fica o que? Não fica nada… Nós temos de ser sempre espantados, de olhos bem abertos, atónitos como as crianças, porque vivemos sempre lado a lado com esse Deus. Vivemos lado a lado com Deus e tantas vezes nem sequer estremecemos. Vive assim: vive com amor, estremecimento, espanto e emoção os sacramentos que pela graça de Deus realizarás, sobre tudo a Eucaristia e a Reconciliação. Como diz o pontifical romano: “recebe a oferenda do Povo Santo para a apresentares a Deus, toma consciência do que virás a fazer, imita o que virás a realizar e conforma a tua vida com o mistério da Cruz do Senhor”. Ámen.

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Dada ao Povo de Deus por Sua Excelência Reverendíssima, Dom António da Rocha Couto, Bispo de Lamego.

(Transcrição da Homilia da Ordenação Presbiteral do Diác. João Miguel Pereira; Lamego, 4 de Julho de 2021; transcrita por: Pe. João Miguel Pereira)


 





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