A liturgia da palavra deste V domingo do tempo comum é bastante rica. Haveria muito a dizer sobre as leituras escutadas, o tempo e contexto em que os textos foram escritos, o seu autor e as comunidades a que se destinaram primordialmente.
No entanto, desta vez, centro-me substancialmente no
Evangelho, com pequenas alusões à primeira e segunda leituras.
Há quatro aspetos do evangelho que me apraz salientar. São
eles: 1) Dia ferial também é dia sagrado; 2) Jesus-Mestre e a barca-cátedra; 3)
Confiar mais em Deus do que nos raciocínios; 4) Pescar à rede, diferente de
pescar ao anzol.
1) Dia ferial também é dia sagrado
O evangelho diz-nos que os pescadores estavam a trabalhar, «estavam
a lavar as redes», depois de andarem «na faina toda a noite». Sugere-nos, por isso,
que os acontecimentos que o evangelho hoje nos narra se deram em dia ferial,
dia de trabalho. Também os dias feriais são dias “úteis” para serem “santificados”
e para se anunciar a Palavra de Deus. Não é apenas ao sábado, na sinagoga para
os judeus, ou ao domingo, na igreja para os cristãos, que se deve anunciar a
Palavra de Deus e muito menos se deve resumir a esses dias o seu cumprimento.
Todo o tempo é momento oportuno para Evangelizar e mesmo no meio das ocupações
laborais a Palavra de Deus pode e deve ser semeada.
2)
Jesus-Mestre e a barca-cátedra
Jesus sentou-Se no barco de Pedro, tal como os mestres se sentam na sua cátedra, para ensinar. A barca no Novo Testamento é frequentemente
utilizada como símbolo representativo da comunidade cristã. Sugere-se, com
isto, que a comunidade cristã deve ser sempre lugar de onde a voz de Cristo
ensina as multidões. A comunidade cristã tem de ser lugar favorável para que a
voz do Mestre alcance os ouvidos dos homens e lugar favorável para que os olhos
dos homens encontrem o rosto e a presença visível de Jesus. (Como precisamos de
melhorar tanto, nós a barca de Pedro, para mostrarmos e fazermos ouvir mais e
melhor a Jesus Cristo). É preciso também reconhecer – e para isso é precisa
muita coragem e humildade – que na barca que é a Igreja, tal como no barco de
Pedro, ao lado de Jesus não estão apenas pessoas excecionais, santas, perfeitas…
Também estou eu e tu, meu irmão e minha irmã, que talvez sintamos justo
dizer como Pedro: «Senhor, afasta-Te de mim, que sou um homem pecador».
Todavia, que o Espírito Santos nos encha de coragem e fervor para rezarmos
«aproxima-te de mim, Senhor, porque eu sou um homem que quero (e só contigo
junto de mim posso) abandonar o caminho de pecador». Que o Senhor toque os
nossos lábios com o seu fogo purificador, faça desaparecer o nosso pecado e
perdoe a nossa culpa (cf. Primeira Leitura: “Vocação de Isaías”). Temos também
de ter consciência que, não obstante a Igreja ser uma barca onde viajam santos
e pecadores, ela e nela continua-se a proclamar a Palavra de Deus que nos
transmite o que ela mesma recebeu, da Tradição e das Escrituras, não como dona
que pode adulterar a Revelação de Deus mas como serva fiel que prega o que lhe
foi revelado. A Igreja não pode mudar a sua doutrina, muito menos para agradar
aos caprichos de cada tempo ou cultura. Paulo não deixou de pregar a verdade aos
gregos de Corinto, mesmo que estes não quisessem acreditar na ressurreição da
carne.
3)
Confiar mais em Deus do que nos raciocínios
Jesus convida Pedro a fazer-se ao largo e a pescar. Pedro,
pescador experiente, sabe bem que já não são horas boas para pescar. A ordem
que lhe foi dada por Cristo para lançar «as redes para a pesca» parece-lhe
insensata. A lógica humana sugere-lhe que renuncie à ordem de Jesus, mas Pedro,
felizmente, consegue confiar no Mestre e prefere obedecer-Lhe. A incerteza dá
lugar à fé, a dúvida dá lugar à confiança… e é quando isto acontece
verdadeiramente em nós que Deus pode realizar maravilhas na nossa vida e pela
nossa vida no mundo.
4)
Pescar à rede, diferente de pescar ao anzol
É verdade que cada vez mais a igreja tem de aprender a
pescar à linha, isto é, a procurar a qualidade em vez da quantidade. Não
importa uma multidão de fiéis se são poucos os que são realmente fiéis. Diz o
ditado popular que «pela boca morre o peixe». O anzol fere e mata. Mas pela
boca se professa a fé que nos salva e que, quando é verdadeira fé, se mostra
associada às obras que a testemunham. Santo Ambrósio (+ 397) sublinha que o instrumento
da pesca apostólica é a rede. A rede não mata nem fere, mas conserva vivo.
Pescar homens à rede é retirá-los/resgatá-los do mar que, para a teologia
hebraica, é símbolo e lugar da morte, do pecado, do vício, das paixões desregradas,
dos ídolos, da violência e da corrupção moral. A missão que Jesus confia aos
seus discípulos (discípulos não são apenas os padres mas toda a Igreja, todos
os batizados) é a de resgatarem os homens e mulheres do mar tenebroso de tudo
aquilo que mata (sobre tudo do que mata a alma) para os trazer para a segurança
da vida junto e na presença de Deus. Será que é isto o que andamos a fazer?
Cada um se interrogue e acuse a si mesmo…
(Pe. João Miguel Pereira, Fev.25)
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