Ecos da ordenação e missa nova no Notícias de Resende

As perguntas e as respostas na integra:

1 - Como e quando surgiu a sua vocação para padre?

É difícil responder a isso sinteticamente. Quem já me ouviu dar o “testemunho vocacional” sabe bem que, mesmo “aligeirando a coisa”, não o faço em menos de 5 minutos de exposição. Eu nasci no seio de uma família cristã, fui habituado a ir à missa ao Domingo desde bebé (é engraçado que ainda tenho memórias de ir à igreja ao colo da minha mãe e ficar rabugento se ela me punha no chão), frequentei a catequese, entrei para o escutismo católico (Agrupamento 1096 - Resende), comecei eu mesmo a dar catequese aos miúdos (na minha paróquia: Freigil)… O “bichinho” começou em miúdo: recordo-me de ir à missa com a minha mãe e estar atento ao que fazia o padre e quando chegava a casa construía o meu próprio “altar”, enrolava-me num lençol branco, pegava um copo com água e umas “bolachas-Maria”, e reproduzia o que via na missa. Para os leitores mais curiosos, sugiro que leiam o meu testemunho em: www.diocese-lamego.pt/noticias/800-entrevista-com-o-diac-joao-miguel-pereira

2 - Como carateriza o apelo que sentiu?

Algumas vezes as pessoas pensam que aconteceu algo tão místico ou anormal - do género de nos ter aparecido um anjo ou de ouvirmos uma voz que surge do céu como um trovão - para nos dizer para irmos para o Seminário. Na verdade as coisas são bem mais naturais: Deus serve-se do ordinário da vida quotidiana para fazer brotar o extraordinário dos seus desígnios de amor. O apelo que senti não foi fruto de uma situação concreta e estanque no tempo ou no espaço. O apelo que sinto - isso mesmo, no presente - é o apelo de um Jesus bom, dedicado e delicado, misericordioso e compassivo, solidário e auto-oblativo, que me toca todos os dias por intermédio da sua Palavra, dos Sacramentos, dos humanos meus irmãos, da beleza da natureza… e me faz sentir a imensidão do seu amor e do seu perdão. E Ele incendeia-me o coração com o desejo de propagar este fogo do seu amor pelo mundo.

3- Como descreve o dia da sua ordenação e o que representou para si?

Normalmente os meus colegas sacerdotes avaliam o dia da sua ordenação como “o dia mais feliz” das suas vidas. Eu tenho 24 anos, acho que ainda não tenho legitimidade para fazer esta avaliação. Mas foi sem dúvida um dia cheio e gratificante, o mais feliz que vivi até hoje… É o culminar de cerca de 7 anos de preparação filosófico-teológica, espiritual, humana, afetiva… onde houve muitas alegrias mas também tristezas e sacrifícios. Foi o dia em que a Igreja depositou nas mãos de um homem frágil, como eu, o mistério e ministério mais excelso do universo: o de poder tornar Jesus sacramentalmente presente no mundo, na verdade do seu Copo e Sangue. Enquanto estava prostrado, Deus deu-me a graça de revisitar imensos momentos da minha vida e de sentir-me grato por tudo o que já tive oportunidade de viver. Nesse tempo - enquanto ouvia a Igreja a pedir a intercessão dos santos para a minha consagração - chorei, ri, senti frio, transpirei de calor… tive sensações tão díspares mas que se completavam. No final, senti um assombro imenso diante do ministério que Deus me estava a confiar, um temor por me sentir indigno e ao mesmo tempo um enorme conforto por me sentir escolhido e amado por Deus apesar dos meus defeitos, bem como um desejo ardente de presidir pela primeira vez à Eucaristia. Desde então, cada vez que celebro a Eucaristia, agradeço profundamente, dentro do coração, ao Senhor, a graça imerecida de o servir nos seus sagrados mistérios. 

4- Qual a sensação de celebrar a primeira missa na sua freguesia?

Obviamente que, durante a semana que distou entre a minha ordenação sacerdotal e a primeira celebração eucarística presidida por mim na minha terra natal, eu não poderia deixar de celebrar o privilégio imerecido que Deus me confiou que celebrasse, que me faz feliz e sentir-me um homem agraciado. Celebrei no Mosteiro das Monjas Dominicanas, no Seminário que foi minha casa 6 anos, nas paróquias onde estou a colaborar com dois sacerdotes que me receberam na fase final da minha formação. Chegar à minha freguesia e celebrar este dom esplendido, com tantos amigos e familiares que se quiseram associar, foi a minha forma de partilhar com as minhas gentes esta graça que Deus me concedeu: um tesouro que não é para eu guardar para mim mas somente para o partilhar com os outros. Jesus diz que «um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus parentes e em sua casa» (Mc 6,4). Felizmente, muito embora também tenha sentido uma certa confirmação da minha missão profética, houve muitos conterrâneos que me receberam com muito carinho e estima… e isso encheu-me de felicidade. Houve muita gente a sacrificar-se para preparar a beleza desse dia. E, desde então, eu elevo-os juntamente com o Corpo e Sangue de Cristo e ofereço-os, no silêncio da minha oração, sobre o Altar da Eucaristia, a Deus Pai.

5- Em que paróquia vai ficar?

Uma das promessas que fiz no dia da minha ordenação foi a de obediência ao meu Bispo e seus sucessores, enquanto sinal de obediência ao próprio Jesus Cristo, Cabeça da Igreja, e ao Papa, pontífice que preside à unidade na caridade Eclesial. E é nessa obediência, que não é cega mas dialogada segundo o Espírito Santo e os critérios do Amor cristão, que o Reverendíssimo Bispo de Lamego, Dom António, me confiou quatro paróquias na Zona Pastoral de Mêda, distrito da Guarda. Distam cerca de 2 horas e meia de caminho da minha casa paterna… mas o desprendimento que confere liberdade para a missão faz parte da vocação sacerdotal.

6 - Quais são as suas aspirações futuras?

Acho que neste momento preciso de tocar o povo de Deus, palpar a sua vida, saborear a sua sabedoria e piedade, deixar secar a minha garganta como a sua para sentir a sua sede… e procurar ajudar a saciar-lhe a sede de Deus, curar-lhe as feridas da alma, incendiar-lhe o coração… e fazer com que em tudo Cristo seja glorificado, ajudando a que o Espírito Santo faça continuamente o Evangelho germinar frutos de santidade em cada família. Gostava de prosseguir estudos, de aprofundar conhecimentos, de adquirir mais ferramentas para trabalhar nesta grande ceara… mas primeiro preciso de descobrir as necessidades da Igreja, só assim poderei acertar na utilidade de investimentos futuros. Acho que neste momento a minha prioridade é acolher, escutar, acalentar, conduzir e oferecer a Deus cada pessoa que o Pai atrair até ao seu Filho e confiar à minha cura. Qualquer aspiração futura passará sempre pelo discernimento da oração, o acompanhamento do meu Diretor Espiritual e a confirmação do meu Bispo.

7- Como comenta esta crise de vocações  e o facto de cada vez menos jovens seguirem o sacerdócio?

A crise de vocações não é só na vida religiosa… as pessoas vivem vidas muito fugazes: não se querem comprometer com nada. As relações afetivo-conjugais quebram-se com uma facilidade arrebatadora. A área académico-profissional troca-se vezes sem conta. As amizades duram tão pouco como a chama de uma vela. Tudo parece tão efémero, descartável, substituível como lenços de papel… Não há vontade de assumir compromissos estáveis: as relações humanas estão a 'recibos-verdes' ou a 'contratos a prazo'. Ao mesmo tempo, a vida corre tão rápido que não se criam oportunidade para uma verdadeira reflexão, calma, consistente e profunda sobre o papel de cada um diante de Deus e do mundo. Há demasiado barulho que impede a escuta de Deus que se manifesta na brisa suave (1 Reis 19:10-15). Claro que nesta cultura qualquer caminho que implique um compromisso estável e permanente é desqualificado. E a vocação sacerdotal implica isso… e talvez por isso não cative jovens que foram educados numa cultura do “carpe diem”, a contornar os sacrifícios e as privações, a agirem segundo os instintos do momento ou as ondas das modas e pouco habituados à meditação diante da essência que habita o interior da cada indivíduo. (Atenção, isto é uma tentação para todos, para nós Padres também: precisamos de lutar para a combater). Também está claro que se a natalidade é baixa há menos indivíduos elegíveis para o Espírito Santo convocar à vocação sacerdotal. Claro que se as pessoas vivem uma religiosidade também ela enfraquecida o mais espectável é que a fé transmitida aos filhos seja cade vez menos: é como tirar fotocópia de uma folha muito gasta com as letras quase apagadas. Isto é uma opinião pessoal, fruto de uma rápida reflexão, precisa de ser amadurecida.

João Miguel Pereira (Mestre em Teologia e Padre da Diocese de Lamego)





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