Sobre o Sacramento da Reconciliação

Reconciliação: também chamado sacramento da conversão, nasce do apelo de Jesus à conversão e do esforço do pecador arrependido em tornar à casa do Pai (CIC 1423). A conversão (contrição e propósito de uma vida nova) exprime-se mediante a confissão feita à Igreja e a remissão dos pecados obtém-se por meio da Igreja, remissão esta que é, ao mesmo tempo, reconciliação com Deus e com a Igreja (CELAM, 226). No Batismo os cristãos tornam-se «santos e imaculados» (Ef 1,4). No entanto, a vida nova com ele recebida não suprime a debilidade e a fraqueza da natureza humana, nem a inclinação para o pecado (CIC 1426). Todavia, o apelo de Cristo à conversão em vista da santidade e da vida eterna não cessa. Assim, ao fiel pecador, a Igreja espelhando a misericórdia de Cristo, concede-lhe, em nome do Senhor, o perdão, convidando-o, auxiliado pelo Espírito do Senhor, a um caminho de contrição e penitência, em vista da cura das suas debilidades, do fortalecimento contra a repetição do erro e de uma restauração da paz e da tranquilidade da consciência, bem como uma reconciliação plena com Deus e com a Igreja. Ele restitui a dignidade e os bens próprios da vida dos filhos de Deus. Por isso, restitui ao fiel, com propriedade, o nome de cristão. 

(Sobre os sacramentos que curam e nos fazem cristãos, por João Pereira)

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Na vida de um “Pastor de Almas”, configurado com o exemplo de Jesus Cristo, a mediação da misericórdia de Deus é um dos pilares basilares do ministério. Vamos aprofundar a compressão deste sacramento a partir de Borobio[1] e outros estudiosos citados nos Aprontamentos Esquemáticos utilizados na Unidade de Sacramentologia, da autoria de Joaquim Félix.

O penitente arrependido aproxima-se, genuflete para humildemente sacrificar metade da sua altura (Guardini) e como um filho para um pai, reconhecer os seus erros, pede misericórdia e espera um abraço revigorante que restabeleça as forças na busca de cada dia se tornar um filho melhor, de ser de novo vestido com túnica mais bela e cândida (oferecida no batismo e manchada pela debilidade), de ser conduzido à mesa Eucarística do Pai (onde o alimento mais digno é oferecido: o Cordeiro sem mancha) para saciar a fome de paz e perdão.

Fundamentos Bíblicos do Sacramento da Reconciliação

Parece-me que um dos aspetos que mais tem feito “cair em desuso” a celebração deste sacramento é a falta de consciência de que ele brotou da pedra angular que é Cristo, que nasce da vontade de Deus, Pai misericordioso que corre de braços abertos ao encontro dos filhos arrependidos. Faremos, pois, um aprofundamento das suas raízes bíblicas.

São várias as passagens alusivas ao germinar deste sacramento. Desde logo Lucas 15, 4-7 que espelha a iniciativa do Pastor (analogia para Cristo) de partir à procura da ovelha perdida e sua alegria quando a encontra pois, tomando-a aos ombros, a traz de volta para casa e convida todos para com eles partilhar a sua alegria. E tamanha “alegria haverá no Céu [ainda que] por um só pecador que se converte”. Um dos aspetos mais importantes desta perícope é o da responsabilidade do cristão (pastor à imagem de Cristo), que não deve contentar-se em esperar o regresso de quem se tresmalhou, mas deve colocar-se a caminho para encontrá-lo e trazê-lo para casa.

Juntamos Lc 15, 11-13, conhecida como a Parábola do Pai misericordioso, um pai paciente que respeitando a liberdade dos filhos espera que voltem a casa, que não se dá a mágoas e ressentimentos mas, ao mais pequeno sinal de arrependimento do filho, corre de braços abertos para o receber e festeja a sua “ressurreição” para a filiação. Ao mesmo tempo devemos notar a figura do irmão que não se alegra com o acolhimento feito pelo Pai e que, cego pelo cumprimento escrupuloso das regras, ainda não conheceu quão longe vai o amor de seu pai pelos filhos e a sua total oblação: “tudo o que é meu é teu”. Importa refletir quantas vezes somos o filho desregrado ou o filho cego pelas regras.

Vamos ainda até Lc 18, 21-35 onde Jesus nos alerta para a propensão que temos a ser servos maus, incapazes de usar com os outros a medida que o Pai celeste primeiro usou connosco: “Levado pela compaixão, o senhor daquele servo mandou-o em liberdade e perdoou-lhe a dívida”.

Ficam evidentes os traços da atitude de Jesus com os pecadores: o convite ao arrependimento com autoridade «Se a tua mão ou o teu pé te escandalizam, corta-os e atira-os para longe de ti» (Mt 18,8), «Serpentes! Raça de víboras! Como haveis de escapar ao julgamento da geena?» (Mt 23,33); a compaixão e misericórdia pelos pecadores verdadeiramente arrependidos seguida do perdão e dádiva da graça (shalom) (Lc 5,20; Lc 7,48; Lc 22,62; Lc 23,43). Vale apena notar que Jesus não pede a confissão detalhada mas a conversão na fé e no amor e que a refeição, figura da eucaristia, tem o lugar privilegiado para o encontro com os pecadores e o perdão dos pecados.

Jesus partilha com a humanidade o poder de, em nome de Deus, perdoar os pecados. Vários textos de Mateus e João atestam que Jesus confia aos Apóstolos e à Igreja o poder de perdoar ou reter os pecados, o poder de ligar e desligar. Isso fica bem explícito em Mt 9, 6-8 onde, após a cura do paralítico, Jesus diz: «O Filho do Homem tem poder na terra de perdoar pecados»; ao que o evangelista acrescenta: «Vendo o ocorrido, as multidões ficaram com medo e glorificaram a Deus, que deu tal poder aos homens». De forma mais personalizada, em Mt 16, 18-19, depois da confissão de Pedro, Jesus diz-lhe: «Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja (…) Eu te darei as chaves do Reino dos Céus e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos céus».

Fica, também, saliente a necessidade da correção fraterna, segundo a pedagogia divina que assume uma gradação crescente, em Mt 18, 15-18: «Se o teu irmão pecar, vai ter com ele e repreende-o a sós. Se te der ouvidos, terás ganho o teu irmão. Se não te der ouvidos, toma contigo mais uma ou duas pessoas, para que toda a questão fique resolvida pela palavra de duas ou três testemunhas. Se ele se recusar a ouvi-las, comunica-o à Igreja; e, se ele se recusar a atender à própria Igreja, seja para ti como um pagão ou um cobrador de impostos. Em verdade vos digo: Tudo o que ligardes na Terra será ligado no Céu, e tudo o que desligardes na Terra será desligado no Céu».

O poder é dado à Igreja pela infusão do Espírito Santo, tal como o atesta o Ressuscitado em Jo 20,19-23: «Soprou sobre eles e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ficarão retidos.’».

Por sua vez, os Escritos Paulinos acentuam mais a preocupação com o pecado do que com o pecador, sublinhando que os méritos do perdão de Deus nos foram alcançados e oferecidos por Jesus Cristo que, com a sua obdiência, morte e ressurreição, nos reconciliou com Deus (Rm 5,10). A iniciativa é de Deus: «Tudo isto vem de Deus, que nos reconciliou consigo por Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação» (2 Cor 5,18-19). Ainda que Paulo desenvolva esta belíssima teologia pascal da reconciliação é, todavia, mais propenso a recorrer à excomunhão como salvaguarda para evitar a contaminação da comunidade: 1 Cor 5, 1-5; 1 Tim 1, 19-20.

De tudo o que vimos, fica claro que o sacramento da reconciliação está presente in germini nos ensinamentos de Jesus e na teologia do Novo Testamento. Todavia, de forma ipsis verbis, o que se verifica é a existência de três procedimentos para responder aos pecados: a remissão dos pecados pelo sacramento do batismo; a correção fraterna; a excomunhão.

 

  


[1] D. BOROBIO, La celebración en la Iglesia, II. Sacramentos (Lux Mundi 58), Salamanca 1990, 453-478.


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