Unção dos doentes: «a doença leva à angústia, ao fechar-se sobre si mesmo e até, por vezes, ao desespero e à revolta contra Deus mas também pode tornar uma pessoa mais amadurecida, ajudá-la a discernir […] à busca de Deus, a um regresso a Ele» (CIC 1501). Neste sacramento, a Igreja atua como Cristo médico: pede aos doentes que acreditem em Deus e assim suportem melhor as contrariedades, testemunha-lhes a oposição da doença à bondade de Deus criador, comove-se com o seu sofrimento ("chora", Jo 11,35), identifica-se com eles, permite-lhes tocar a divindade que se lhes faz próxima ("tocou-lhe", Lc 8,44), compartilha os seus sofrimentos, procura curá-los, sempre numa incansável atitude de mostrar e fazer próximo o Reino ("as obras de Deus fossem reveladas na vida dele", Jo 9,3). Assim, este sacramento visa, sobretudo, auxiliar o fiel a não perder a fé e a esperança, agarrando-se, com todas as forças do coração e da mente, a Deus, tendo em vista a atenuação da dor física, evitando o temor, a angústia, o desespero, a sensação de solidão, ajudando a integrar a dor como parte inerente à vida humana.
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A compreensão da doença dentro do plano de Deus é difícil.
São como que dois conceitos antagónicos: de um lado o mal e a dor infligidos
pela doença, do outro a bondade e a omnipotência de Deus que parece ser posta
em causa com aquela. E o risco acentua-se porque, sendo a doença imanente e
constatada durante toda a vida com as dores da carne e os sofrimentos do
Espírito, parecem negar Deus que permanece transcende e invisível aos olhos, ou
pelo menos pôr em causa a sua bondade. Parece-me que uma compreensão dos
fundamentos do sacramento da Unção dos Doentes é verdadeiramente útil para que
seja dignamente celebrado e possa brotar nos fiéis os frutos da graça com que o
Espírito Santo os quer adornar mas também acho útil num aprofundamento
teológico da convivência desses dois conceitos, mesmo que sem a sua conivência.
Fundamentos Bíblicos e Históricos do
Sacramento da Unção dos Doentes
Se recuarmos aos tempos bíblicos de Israel, rápido percebemos
o valor e sentido simbólico e teológico associado ao óleo/azeite. O mesmo é
retomado e aprofundado nas primeiras comunidades cristãs. Ele surge como
símbolo da prosperidade e fertilidade (Dt 33,24; Sl 133,2; Jb 29,6; Dt 33,24),
das bênçãos de Deus (Dt 7,13; 2 Rs 20,13), iluminação da habitação (Mt 25,
1-13), higiene-beleza-alegria (Sl 133,2; Sl 141,5; 2 Sm 14,2; Mt 6,17),
respeito e tratamento prestado ao hóspede (Sl 23,5; Lc 7, 36-50; Jo 11,2; Jo
12,3), amor conjugal (Ct 1,12; Jo 12,1-8), alívio da dor física e espiritual
(Sl 109,18; Mc 6,13; Tg 5,14), é um dos elementos oferecidos nos sacrifícios no
Templo (Gn 35, 14; Ex 29,2.7.23; Lv 2,4-10), mantém a lâmpada sempre acesa
diante do Senhor (Lv 24,2-3; Nm 4,16; Sir 38,11), constituinte dos perfumes,
utilizado para massajar os atletas, guerreiros ou os que tinham trabalhos
pesados, símbolo escolha do rei por Deus que lhe dá autoridade, poder e glória (1
Sm 16,1-3; 2 Sm 2,3-4), sinal de consagração do profano a Deus e dos sacerdotes
(Ex 29,4-7; Ex 40,12-15; Gn 28,18.22; Gn 31,13), Jesus Cristo é o Messias, isto
é, o ungido de Deus (Mt 16,16; Mc 8,29; Lc 9,20; Jo 6,68)[1].
Ao mesmo
tempo, a doença no mundo bíblico vai tendo progressivas interpretação
teológicas. É, por umas vezes, atribuição a forças demoníacas (cf. Mt 17,8).
Por outras, considerada como causada pelo pecado (cf. Mc 2,5; 1 Cor 11,30).
Como castigo divino (amigos e esposa de Job e Dt 28,16-32, Lv 26,14-16) e também
com fruto do mal em geral: injustiças, desgraças, sofrimento. Também é evidente
uma compreensão de que ela afeta as relações com Deus e com o individuo inteiro
(na sua dimensão corpórea e espiritual).
Obviamente a escritura não pretende explicar o “como” dos
fenómenos biológicos e psicológicos que originam a doença, mas tenta encontrar
uma explicação teológica par responder ao “porquê?”. Propõe algumas respostas.
A explicação etiológica: que defende que a doença não é fruto de uma retribuição,
mas oposição ao bem e a Deus criador, ainda que noutros lugares a veja como
castigo que se deve à culpa do pecado do homem: (Gén 1-3; Sl 11, 34,39…; Ex
4,6; Job 16,2; Dt 28,15). A explicação jurídico-penal: que defende que ela é originada
pelo pecado pessoal, que merece o devido castigo (1 Sam 16,14; 2 Re 5,27;
20,1-11; Sl 32,3-5), mentalidade em conexão rígida com a literatura rabínica,
matizada nos textos bíblico. A explicação demenológica: que a encontra
relacionada com o pecado, com o demónio, a possessão demoníaca, os poderes do
mal vendo nos binómios “saúde/doença”, “bem/mal” domínios de Deus e de Satanás,
respetivamente (1 Sam 16,14; Os 13,14; Job 18,13; 2,7…).
Ora a tentativa de relacionar o pecado com a doença (numa
relação causa-efeito) fica fragilizada pelas questões que se levantam no homem
pensante e nos próprios doentes (p/ex. Job): Como explicar a impunidade dos
maus? Por que sofre o justo? Existem algumas tentativas de resposta ao
problema: que respondem que tal impunidade é aparente e provisória, pois haverá
uma justiça final (Sl 73). A solidariedade (p/ex. o castigo dos pais nos
filhos) no pecado e responsabilidade coletiva (Ez 18,1ss; Jer 31,29). As respostas
no livro de Job: relação direta do sofrimento com o pecado, ou o sofrimento/doença
como instrumento de prova e purificação a que Deus expõe o inocente e por isso
não há uma explicação lógica entendendo-se o sofrimento como parte dos
desígnios de Deus, em quem os homens devem confiar (Job 42,4). Sendo o
sofrimento inevitável, há duas atitudes a tomar: Confiar plenamente em Deus,
cujos planos são diferentes dos nossos (Sl 44) e aceitar o sofrimento como
fazendo parte da inconsistência da vida presente (diferente da vida em
plenitude), e não simplesmente como consequência do pecado (Eclesiastes).
Com o
desenvolvimento da esperança escatológica, desenvolve-se a noção da chegada do
«dia de Iahweh» para acabar com o sofrimento e fazer justiça a todos, bons e
maus. Desenvolve-se também a esperança da ressurreição pela qual Deus fará
justiça ao justo depois da morte, ressuscitando-o enquanto que a sorte dos maus
será o suplício eterno (literatura apocalíptica e sapiencial). Dá-se também o
aprofundamento do valor redentor do sofrimento aos pecados do povo: explicação
que começa na oferta sacrificial de Moisés (Ex 32,30-33), repetida por Jeremias
(8,18) e desenvolvida no Deutero-Isaías com a figura do servo de Iahweh (52,
13-53,12). A consciência do sofrimento humano como mistério, pois também Deus
combate o sofrimento e a enfermidade (Am5,7; 6,12; Is 5,7.23; Jer 22,13.15),
sem o evitar, mesmo se com poder para isso.
O recurso à medicina, comparando o AT em relação a outros
povos, verifica um certo atraso devido à conceção de impureza do doente (que a
lei proíbe de ser tocado), à proibição do derramamento de sangue (pois nele
está a alma), à atribuição a Deus da saúde e da doença (contra o qual não se
pode lutar). Portanto, mesmo com o Elogio da profissão médica (Ecl 38,1-8), só
se considera o uso de medicamentos simples (Is 1,6; Jer 8,22; Sab 7,0) ao passo
que Deus é, porém, o verdadeiro médico do homem (Ex 15,26), pois dele depende a
vida e a morte (Dt 32,39). Os enfermos recorrem, por isso, aos sacerdotes (Lev
13,49ss; 14, 2ss…) ou aos profetas (1 Re 14,1-13), de quem esperam intervenções
miraculosas (1 Re 17, 17-24...). Recorre-se também a medicinas domésticas e
naturais: plantas e à unção com óleo (Is 1,6; 7,20). Quanto à relação com os
enfermos, recomenda-se a visita e atenção (Sl 40,4, Job 2,11), não abandonar os
que sofrem (Ecl 7,39ss), mas também que se evite o contacto em relação a alguns
doentes (leprosos), considerados impuros e castigados por Deus (Lev 1314; Num
12,10.15).
Com Jesus Cristo aparece uma descontinuidade. Ele é o Ungido
que carregará as nossas enfermidades e dores e, em cumprimento da promessa
messiânica, as fará desaparecer definitivamente. Com Ele, «os cegos vêem e os
coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam
e a Boa-Nova é anunciada aos pobres» (Mt 11, 4-5). São várias as enfermidades
referidas no NT [febre, feridas de pele, úlcera, gangrenas, reumatismos (Lc
3,11), hemorragias (Mt 9,20), hidropisia (Lc 14,2), disenteria (Act 28,8), dores
de estômago (1 Tim 5,2), manifestações nervosas de lunáticos, com convulsões,
etc., desordens funcionais: coxos, surdos, cegos, mudos, paralíticos, mancos,
etc.], tal como vários são os remédios modestos para elas [óleo (Mc 6,13; Lc
10,34), vinho como desinfetante (Lc 10,34), colírio para os olhos (Ap 3,18),
águas termais (Jo 5,2ss), saliva (Mc 7,33; Jo 9,6), lodo (Jo 9,6ss)].
Jesus afasta-se
das conceções clássicas do princípio da retribuição pecado-enfermidade e
castigo-doença (Jo 9,1-41). Realiza ações simbólicas e cura enfermos. Ora e
escuta a oração dos enfermos (Sl 6, 22; 26; 28…Mt 11,24; 6,9-13…). Acolhe-os e
impõe-lhes as mãos (Mt 8,3; Mc 6, 5…). Toca-os com saliva (Mc 7,32ss; 8,23…).
Unge-os com óleo (Mc 6,13).
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