No dia 30 de setembro de 2019 o Papa Francisco, com a Carta Apostólica Aperuitillis (Abriu-lhes), instituiu o III Domingo do Tempo Comum como Domingo da Palavra de Deus. Não porque os outros domingos não o sejam também “domingos da Palavra de Deus”, mas porque pareceu necessário instituir um «domingo dedicado inteiramente à Palavra de Deus, para compreender a riqueza inesgotável que provém daquele diálogo constante de Deus com o seu povo» (Carta ap. Misericordia et misera, 7).
O
domingo da Palavra de Deus «pretende ser, não “uma vez no ano”, mas uma vez por
todo o ano, porque temos urgente necessidade de nos tornar familiares e
íntimos da Sagrada Escritura e do Ressuscitado».
É
verdade que «já se tornou uma prática comum viver certos momentos em que a
comunidade cristã se concentra sobre o grande valor que a Palavra de Deus ocupa
na sua vida diária» e «é bom que não venha jamais a faltar na vida do nosso
povo esta relação decisiva com a Palavra viva, que o Senhor nunca Se cansa de
dirigir à sua Esposa, para que esta possa crescer no amor e no testemunho da fé».
«Precisamos de entrar em confidência assídua com a Sagrada Escritura; caso
contrário, o coração fica frio e os olhos permanecem fechados, atingidos, como
somos, por inumeráveis formas de cegueira».
A
Palavra de Deus, sobre tudo pela sua proclamação em contexto litúrgico, deve
ser motivo que nos convoca, reúne e unifica, atrai a nossa atenção, dá sentido
à nossa vida, faz brotar dos nossos corações comoção e pranto que despertam em
nós desejo de conversão.
Sobre
isso nos fala a primeira leitura, retirada do livro de Neemias, que nos
situa em Jerusalém depois da época pós-exílio da Babilónia (após do édito
de Ciro, em 538 a.C.) quando os exilados judeus puderam regressar à sua terra e
iniciar a reconstrução de Jerusalém e do Templo e a restauração da nação
judaica.
Mesmo
cem anos depois desse regresso o povo ainda não tinha conseguido reorganizar a
sua vida. A anarquia é total: cometem-se roubos, abusos, violências, vexames
para com os mais pobres. Por esse motivo o rei da Pérsia, Artaxerxes, de quem
depende a Palestina, envia a Jerusalém Esdras, «sacerdote e escriba, versado no
conhecimento da Lei do Senhor» (Esd 7, 11). Este dá-se conta que as desordens se
devem à falta de fidelidade à Lei do Senhor que o povo esqueceu durante o
Exilio da Babilónia.
Importa
dar início à revitalização da fé do povo: a Lei de Deus estava esquecida e o
culto estava desorganizado. Neemias, governador e Esdras, sacerdote,
convocam a comunidade para escutar a leitura pública do “livro da Lei de
Moisés” (Ne 8,1), o nosso livro do Deuteronómio ou uma versão abreviada do
atual Pentateuco. O objetivo é ajudar o Povo a retomar contacto com a
Palavra de Deus e a recordar os compromissos que assumiu com o seu Deus,
mas que, entretanto, esquecera.
No
primeiro dia do ano o povo convocado reúne-se para ouvir a leitura que se prolonga por várias horas, “desde a
aurora até ao meio dia”. É escutada por todos os membros da comunidade: homens,
mulheres e crianças em idade “de compreender”.
O
leitor está num “plano superior a todo o povo” que, além de permitir que
a Palavra seja escutada por todos sem obstáculos, simboliza a autoridade da
Palavra. O livro é aberto com toda a solenidade pelo sacerdote Esdras e o
Povo levanta-se para escutar a Palavra. Depois de o sacerdote bendizer o
Senhor, o Povo aclama: “Amen, Amen”, manifestando a sua adesão à bendição
feita. Depois, todos se inclinam com a face por terra e adoram o Senhor,
presente no meio da comunidade através da sua Palavra. Os levitas leem a
Palavra “clara e distintamente” e explicam o seu sentido, de maneira que todos
possam “compreender a leitura”. Todo este cenário sugere a centralidade da
Palavra na vida daquela comunidade e a reverência que a comunidade do Povo
de Deus deve sentir diante da Palavra.
Finalmente,
temos a resposta da comunidade à Palavra proclamada: “todo o povo chorava,
ao escutar as palavras da Lei”. A escuta da Palavra leva ao questionamento
da forma como se vive, das ações que se praticam, das opções que se fazem; e,
ao constatar a forma como a vida está distante das exigências de Deus, o Povo
manifesta a sua tristeza com o choro. Esse choro, contudo, não é mau: é
fruto do arrependimento que leva à conversão. A Palavra é eficaz e leva à
transformação da vida.
O
texto que nos foi dado ler termina com o convite de Neemias ao povo para não se
entristecer. O dia da escuta da Palavra de Deus é um dia consagrado a nosso
Senhor em que se deve fazer festa. A certeza de que Deus continua a falar,
a acompanhar e a guiar o seu povo é fonte de grande alegria e esta manifesta-se
também externamente com cantos, danças, alimentos e bebidas mais abundantes que
o habitual.
Deste
texto de Neemias vemos aquilo que Paulo na Carta aos Hebreus vai aludir: «a
Palavra de Deus é viva e eficaz, mais cortante que qualquer espada de dois
gumes» (Heb 4,12). É como a chuva e a neve que descem do céu e não
voltam para lá sem terem regado a terra, a terem tornado fértil e sem fazerem
germinar as sementes (Is 55, 10). Então, «felizes os que ouvem a Palavra
de Deus e a põem em prática» (Lc 11, 28).
Ora,
o lugar privilegiado para escutar a Palavra de Deus é o encontro comunitário
no «dia do Senhor», o domingo, em que o Ressuscitado dirige a sua palavra à
comunidade reunida. Por isso, ensina a Didascália (um texto cristão do
século III d.C.): «Não queirais antepor à palavra de Deus as necessidades da
vossa vida temporal, mas ao domingo, pondo de lado tudo o resto, correi à
igreja. De facto, que justificação poderá apresentar a Deus quem não se junta
neste dia em assembleia a escutar a palavra da salvação?» (Didascalia, II, 59,
2-3).
No
Evangelho, Jesus mostra-nos que era seu costume no «dia do Senhor», o sábado
para os judeus, entrar na Sinagoga, fazer a leitura da Palavra de Deus e
ensinar. Desta vez entregam-lhe o Livro do Profeta Isaías. E nas palavras
de Isaías Jesus reconhece a sua missão: «O Espírito do Senhor está sobre
mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Ele me enviou a
proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade
aos oprimidos e a proclamar o ano da graça do Senhor». A Palavra de Deus revelada
pelos profetas e hagiógrafos encontra em Jesus o seu cumprimento e a sua
plenitude. Ele é a Palavra de Deus que encarnou. Em si cumpre-se toda a
Escritura.
Acolher
a Palavra de Deus é acolher Jesus Cristo e, como o escreveu S. Jerónimo, «a
ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo». Então, não deixemos de
escutar atentamente a Palavra de Deus, de conviver com ela todos os domingos e
dias de preceito, de nos comovermos com os seus ensinamentos, de nos deixarmos
moldar por ela. Quem ouve a Palavra de Deus que é Jesus Cristo e acredita n´Aquele
que O enviou tem a vida eterna (cf. Jo 5, 24).
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